terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Coisas de circo


Ambos trabalhavam num circo, entre palhaços, domadores de leões e malabaristas de todo tipo. Não ganhavam muito. Sobreviviam com alguma dignidade e muitíssimas privações. Eram tempos difíceis. A era romântica e glamorosa dos espetáculos circenses havia acabado. Houve dias em que o público pagante não igualava em número ao elenco e pessoal dos bastidores. Outros, em que tinham de cancelar totalmente as apresentações. Mas seguiam em frente, sonhando com dias mais generosos e alegrias mais duradouras.

Ela girava pratos. Às dezenas, equilibrados em grandes hastes de metal. Iniciava com um único. Depois, um segundo; e assim por diante. Até que houvesse tantos a rodar que já não era possível acompanhar os movimentos de cada um. Quando o primeiro começava a perder velocidade – e quase que caía: rotações mais lentas, oscilantes, de deixar tensa toda a platéia – logo chegava ela, com sua agilidade incrível e mãos extremamente precisas, para dar nova força ao girar do prato e mantê-lo em seu lugar. Que disciplina. Que equilíbrio. Que dedicação. Recebia muitos aplausos.

Ele era diferente. Sua especialidade, a cama-elástica. Saltava lindamente. Às alturas. Parecia não ter limites. Começava discreto, pequenos pulos e algumas cambalhotas. Às vezes, enquanto aquecia, saía dos limites de seu aparelho, dando a impressão de ser inexperiente ou não estar em melhor dia. Mas era questão de tempo para arrancar os primeiros suspiros dos espectadores. Subia a ficar pequeno aos olhos do público. Girava, fazia piruetas, brincava. Parecia saber voar. A cada apresentação, estabelecia novas marcas e imaginava novas formas de surpreender. Também era muito aplaudido.

Ninguém poderia imaginar que viviam juntos, o saltador e a equilibrista. Dividiam um bem modesto trailer, onde também criavam seus dois filhos, nascidos no circo. O mais velho, nove anos, já aprendia com o pai a saltar. Seria seu sucessor e o superaria. Tinha jeito para a coisa. O mais novo, cinco anos apenas, fazia pequenos truques de equilibrar, mas gostava mesmo era de mágica. Encantava-se com coelhos nas cartolas e pombas sob lenços. A mãe admirava-lhe o brilho do olhar. Tinha medo que ele não conseguisse futuro mais interessante.

Ainda que a vida não melhorava para o casal, também não piorava. Vez ou outra, eles lidavam com atrasos nos pagamentos, enfermidades dos filhos, conflitos de família, mas pareciam conhecer o caminho das pedras. Não perdiam a linha. Eram vividos, talentosos, amáveis. Todos os admiravam. Como saberiam que eram tão infelizes e vazios? Como suporiam que estavam a ponto de explodir?

Explodiram. Nunca mais o viram. Sumiu no mundo como se tivesse saltado de sua cama-elástica para fora da atmosfera. O filho salta como ele. Melhor que ele. Atrás dele, quem sabe? Nunca mais sorriu. Ela ficou, embora solitária e desiludida, girando seus pratos e hastes a cada novo dia, sem, contudo, saber por quê. O menor a observa por horas e, às vezes, tenta uma mágica, para alegrar-lhe o rosto. Ela vê o segredo do truque e sorri de seu desajeito infantil. Ele sente, por um segundo, o sabor do sucesso.

Quando lhe perguntam como chegaram a tal ponto, desconversa e faz-se de forte. Uma ou outra ocasião (por carência, talvez), conta que há muito estavam distantes. Queixava que ele não a ajudava com os pratos. Na verdade, queria mais cumplicidade. Ele, no entanto, mais entusiasmo. Ela, mais segurança. Ele, mais aventuras. Ela, mais controle. Ele, mais conquistas. Ela, mais carinho. Ele, mais paixão. Ela, mais apoio. Ele, mais incentivo. Dizia que ela não dava valor aos seus esforços; que recebia aplausos de todos os públicos, mas nunca o dela. Sequer um sorriso de aprovação. Como poderiam continuar juntos? Como suportaram tanto tempo?

Quem sabe agora, sozinhos, independentes, livres um do outro, serão mais felizes? Ao menos (é o que imagino, pois, caso contrário, não fará qualquer sentido), ficarão sem as diferenças, as cobranças, as expectativas de uma ajuda que nunca chega, um aplauso que nunca vem; as preocupações com as despesas, educação dos filhos, preferências por um ou outro, quem cuida do quê, quem faz o melhor show ou quem é mais comprometido com a família. Estas e outras daquelas coisas que só acontecem no circo, entre palhaços, domadores de leões e malabaristas de todo tipo...

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